Vamos começar esse texto respondendo a essa pergunta de forma clara e objetiva: sim, videogame é cultura sim. O assunto mais falado na última semana entre a comunidade gamer do Brasil foi, sem dúvidas, sobre a relação dos jogos e o Vale-Cultura, e a declaração da ministra da cultura Marta Suplicy que, quando perguntada sobre jogos eletrônicos, disse que eles não seriam contemplados pelo benefício cultural, gerando uma certa revolta por parte de todos aqueles que gastam boa parte do seu tempo com um controle nas mãos – e também dúvidas.

Possivelmente você já deve estar careca de saber dessa história, mas pra quem ainda não sabe o que aconteceu – talvez você estava preso em um buraco ou zerando Skyrim – , vou tentar explicar em poucas palavras do que se trata o Vale-Cultura e o que aconteceu recentemente.

O Vale-Cultura é um projeto de lei que foi aprovado no fim de 2012 e deve entrar em vigor a partir de Julho desse ano, que beneficia com o valor de R$ 50 mensais quem receber um salário de até R$3.390 (o equivalente a cinco salários mínimos) e que esteja trabalhando em regime CLT em empresas que aderirem ao projeto. O benefício, que é cumulativo, poderá ser gasto com a compra de produtos (revistas, DVDs, etc.) e ingressos para cinema, shows, teatro e outros eventos culturais, e inicialmente TV a cabo.

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Foto: Secretaria Municipal de Cultura

No fim de Fevereiro desse ano, Marta Suplicy, recém nomeada Ministra da Cultura, declarou durante a assembléia do Vale-Cultura, ao ser perguntada sobre a utilização do benefício na compra de jogos, que “no caso dos jogos digitais, o assunto ainda não foi aprofundado o suficiente, mas eu acho que eu seria contra. Eu não acho que jogos digitais sejam cultura”. A declaração, que mesmo continuando com Marta Suplicy dizendo que “a portaria é flexível, na hora em que vocês conseguirem apresentar alguma coisa que seja considerada arte ou cultura, eu acho que pode ser revisto”, gerou uma revolta e tanta, e que piorou ainda mais quando ela, em outra declaração feita nessa semana (dia 12), que “não mesmo” os games poderão ser adquiridos através do benefício do Vale-Cultura – nesta declaração Marta Suplicy informou que TV a cabo também não seria mais contemplado.

As últimas declarações da ministra gerou um grande alarde e rendeu muita discussão na internet, e com toda a razão. Diversos sites escreveram sobre sua indignação e a ACIGAMES – Associação Comercial, Industrial e Cultural de Games – publicou uma carta aberta à Marta Suplicy. Em primeiro lugar, já que é sobre isso que esse texto se trata: desde quando videogame não só é cultura, mas também um produto da cultura? Nem precisamos falar de diversos jogos que se tratam de contextos históricos, mitológicos e sociais que nos ensinam com seus roteiros, basta lembrar que Mario é mais famoso do que o próprio Mickey Mouse, conforme dados de uma pesquisa americana nos anos 90. Nós, gamers, sabemos disso.

Ainda assim, Marta Suplicy cometeu uma de suas maiores gafes, agora como Ministra da Cultura. Se esqueceu (ou não se informou?) de dois assuntos importantíssimos quando se trata de jogos e cultura em nosso país: que o desenvolvimento de jogos digitais estão inclusos na Lei Rouanet de incentivo à cultura (o jogo Toren, por exemplo, recebeu o apoio), e principalmente do BR Games, o programa lançado pelo próprio MinC para fomentar o setor de jogos no país. Isso sem contar as diversas exposições em museus relacionadas a jogos e entretenimento eletrônico, a produção de jogos educativos – em nosso último BonusCast falamos do Calangos, desenvolvido pelas universidades UFBA, UEFS e Mackenzie – , espetáculos visuais e musicais (como a Video Games Live e demais apresentações por orquestras brasileiras) e também literatura. Talvez você não saiba, mas no próprio site do Ministério da Cultura há um conteúdo específico para… jogos.

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Imagem de Toren, jogo da Swordtales que recebeu o apoio da Lei Rouanet.

Mas se jogos eletrônicos são de fato cultura, por que ele é tão ignorado? O Vale-Cultura deve mesmo contemplar a compra de jogos eletrônicos?

Deveria, sem dúvida, já que é cultura. Mas não podemos esquecer da atual situação do nosso país quando se trata de distribuição de jogos por aqui, e isso dificulta demais o possível uso do benefício. O Brasil é um dos países com a maior taxa de importação, sem contar que jogos e videogames são considerados jogos de azar, e não produtos culturais (como livros, por exemplo). O resultado disso nós já sabemos e muito bem: jogos custando cerca de R$ 200 em seu lançamento e videogames super faturados (vocês lembram o preço do PS3 quando ele chegou oficialmente no Brasil?), e a aquisição final chega em nossas mãos pela importação ou pela pirataria. Em resumo: videogame é algo muito caro por aqui.

Por mais que um jogo eletrônico seja contemplado para sua aquisição utilizando o Vale-Cultura, vem a seguinte dúvida: aonde compraríamos? Obviamente seria feito algum plano de compra em estabelecimentos específicos, mas não temos muitas redes especializadas, e isso já é um grande problema. Distribuição digital seria a melhor alternativa, mas seria um procedimento bem complicado pra liberar a compra usando o vale – quem iria distribuir os jogos, e quanto ele custaria? Supondo que todo jogo de videogame é caro, pra comprar um título “AAA” em seu lançamento iria demorar entre 3 a 4 meses para a aquisição de um jogo, aproveitando que o benefício é cumulativo. A única vantagem disso é garantir um jogo ‘gratuitamente’ no final desse período, o que tecnicamente não é: depende se a empresa na qual for empregado em regime CLT tiver interesse em oferecer esse benefício, e pode ser descontado 10% do valor do vale-cultura (R$ 5,00) na folha de pagamento, ou seja, ainda contribui no valor final mesmo que pouco.

Pra piorar ainda mais a situação, não podemos ignorar uma triste realidade em nosso país: não são todos que possuem acesso a um videogame. Usando os dados informados do próprio Ministério da Cultura, 13% dos brasileiros vão ao cinema pelo menos uma vez ao ano, por exemplo. Sem precisar citar o analfabetismo em nosso país, existem milhares e milhares de pessoas que, infelizmente, nunca foram a um teatro ou a um museu, ou sequer possuem uma TV em casa. Se fomos parar para analisar a atual situação do povo brasileiro em questão de conhecimento, educação e acesso a materiais que agregam à cultura, os videogames e jogos eletrônicos estão longe de fazer parte desse grupo cultural.

O grande problema, como a internet nos mostrou durante essa semana graças a inúmeras declarações, é que muitos reclamam de um assistencialismo desnecessário – uns já apelidaram o projeto de Bolsa Cultura, criticando o projeto como um Bolsa Família – ou simplesmente criticam a situação dos jogos não serem contemplados simplesmente por não conhecerem ou porque jogos eletrônicos não fazem parte do seu dia a dia, ou da forma como se entretém. Porém, o grande problema vem da nossa própria comunidade, pois aparentemente boa parte dos que reclamam não estão interessados em usar o benefício por motivos culturais, mas pra “ganhar” jogos.

Deixo claro que não estou defendendo a ministra Marta Suplicy e suas declarações, pelo contrário. Assim como disse no começo desse texto, jogos eletrônicos são cultura, e a nossa ministra – que parece ser desprovida de carisma – está mais do que desinformada do assunto. Seria muito mais fácil ela declarar que o Vale-Cultura tem como principal objetivo priorizar o benefício a produtos e espetáculos que são mais acessíveis a toda a população, certamente não seria tão hostilizada e mal interpretada.

Por mais que nós possamos reclamar pela aquisição de jogos eletrônicos com o benefício sejam contemplados com o Vale-Cultura, não é criando um jogo contra a ministra ou presenteando-a com álbuns orquestrados de trilhas sonoras e artbook de Final Fantasy que vamos conseguir conscientizar ou convence-la de que jogos deveriam fazer parte do benefício. Ainda estamos dando os primeiros passos para melhorar a situação do mercado de games no país, e  o buraco é mais embaixo – e cada vez mais fundo. É disso que deveríamos reclamar com o Ministério. Apenas reclamar e criticar não vai adiantar, e é essa atitude que devemos mudar em nossa cultura.

 

(Este texto não procura incentivar qualquer tipo de opinião política. Entre todos os textos que li durante essa semana, destaco os que me chamaram mais a atenção: “Para Ministra, Game Não é Cultura. Sim, Ele É.“, escrito por Kao Tokio no site Geek.com.br; “Marta Suplicy, vale-cultura e a revolta gamer“, por Pedro Falcão no Kotaku Brasil, e principalmente “O Vale-Cultura ainda não é o que os videogames precisam no Brasil“, por Henrique Sampaio no site Arena iG, que expressou parte do meu pensamento sobre a situação dos jogos nos país.)