Foi anunciada para este ano a chegada de uma versão remasterizada de Night Trap para PS4 e Xbox One, comemorando o aniversário de 25 anos do lançamento do game, em 1992. A volta do clássico do “terror” (na verdade o jogo é uma sátira nada assustadora), lançado originalmente para Sega CD e computadores DOS e Mac, vai dar a chance para uma nova geração conhecer um dos jogos mais controversos da história, e um dos protagonistas do processo no congresso estadunidense que instituiu a Entertainment Software Rating Board (ESRB), classificação etária usada até hoje na indústria.

A polêmica de Night Trap, apesar dos seus 25 anos, envolve questões extremamente atuais na discussão sobre games: misoginia, violência, sensacionalismo da mídia e pânico moral. O jogo surgiu em meio a campanha da Sega para se diferenciar da Nintendo através de um posicionamento mais “adulto”: enquanto a Big N faturava com o universo colorido cheio de apelo infantil de suas franquias mais conhecidas, a Sega mirava nos meninos mais velhos, entrando na puberdade, muitas vezes apostando no apelo do sexo e da violência. Essa estratégia rendeu algumas pérolas, como as duas campanhas de muito bom gosto que você pode ver abaixo.

Nesse cenário, moderar a violência e a objetificação feminina não era uma preocupação na época do desenvolvimento de Night Trap. O jogo foi produzido com sequências em live action filmadas durante 1987, originalmente para um hardware experimental da Hasbro chamado Control-Vision (ou NEMO), que usava cartuchos e fitas cassete.

As cenas abusavam de atrizes no estilo “sexy” e cafona dos slasher movies populares na época. Porém nenhuma delas é realmente assustadora ou gore: o game é uma grande galhofa com os filmes de terror, que acabava sendo tão ridículo quanto eles. Por exemplo, um ano antes havia estreado O Massacre da Serra Elétrica 2, que tem esta passagem primorosa (peço perdão por isso):

Como o console nunca foi lançado devido ao seu alto custo, o game foi adaptado para computadores e Sega CD, e buscava impressionar com o uso de vídeos e atores (uma tendência que foi forte no início dos anos 90, com títulos como Phatasmagoria). A história e a jogabilidade eram simples: um grupo de mulheres jovens é perseguido por vampiros durante uma festa do pijama, e cabe ao jogador defendê-las usando armadilhas e alternando entre as câmeras de segurança da casa. As cenas exploravam bastante o corpo das moças, apesar de não serem explícitas.

Embora popular, a exploração da imagem feminina nos games já tinha sido notada e questionada antes mesmo do lançamento de Night Trap. Em 1991 o pesquisador Eugene F. Provenzo Jr. publicou pela editora Harvard University Press o que é considerado um dos primeiros estudos sobre violência e machismo nos games, o livro Video Kids: Making Sense of Nintendo, em que o autor analisou 47 games para NES e considerou 40 deles violentos, além de predominantemente machistas e racistas.

O pioneirismo do livro, um estudo ponderado e sem o sensacionalismo com que a mídia tratou o tema posteriormente, projetou Provenzo como referência acadêmica em games, mas não foi bem recebido pela indústria. O departamento jurídico da Nintendo era tão agressivo na época que a editora não teve coragem de manter o título original do livro, The World According to Nintendo.

Porém mesmo com a discussão sobre machismo e violência nos games já em pauta quando Night Trap foi lançado, o game não provocou muita polêmica logo que chegou as lojas, porque, como pudemos ver naquela cena constrangedora de O Massacre da Serra Elétrica 2 (eu sei que é uma motosserra, mas essa é a tradução oficial infelizmente), o jogo estava inserido em uma cultura bem mais ampla e por isso, normalizado. As reviews foram em geral positivas e se concentraram mais nos aspectos técnicos, principalmente a tecnologia de uso de vídeo suas possibilidades gráficas. Night Trap era só mais um jogo que buscava apelo no sexo e violência, e isso já não era novo.

O ataque do canguru

Tudo mudou na manhã de 1º de dezembro de 1993, quando o senador democrata Joseph “Joe” Lieberman convocou uma coletiva de imprensa em Washington. Ao seu lado estava Bob Keeshan, um dos apresentadores infantis mais populares da TV estadunidense, conhecido como o personagem Captain Kangaroo. Os dois exibiram para os jornalistas presentes cenas de Night TrapMortal Kombat, que haviam sido lançados recentemente. Tudo foi bem descontextualizado e pegou mal. Especialmente a cena abaixo, um game over de Night Trap.

O congressista bateu forte nos games apresentados na reunião. “Nós não estamos mais falando de Pac-Man ou Space Invaders. Nós estamos falando sobre video games que glorificam a violência e ensinam as crianças a apreciarem suas formas mais horríveis”. Keeshan reforçou o discurso de Lieberman e ressaltou que a juventude estava sendo exposta à atrocidades em nome da ganância da indústria de games.

Para os jornalistas presentes, o tom inflamado tinha apelo. Além da polêmica, sempre interessante para a mídia, a ideia de que games eram exclusivamente para crianças era forte, e o marketing ambíguo das empresas, que tanto se posicionavam como fabricantes de brinquedos quanto buscavam o público de jovens e adultos, não ajudava.

Outro grupo interessado no potencial publicitário do escândalo eram os integrantes do senado estadunidense. O tema mobilizava os pais, combinava com os discursos moralistas que fazem sucesso nas campanhas políticas e entrava em campo desconhecido para boa parte dos adultos, que não compreendia ainda a nova mídia. A soma de apelo emocional e ignorância era a receita perfeita para o pânico moral, e o senador Lieberman levou a questão para o congresso. O assunto foi tratado com tanta urgência que a primeira sessão sobre o tema rolou apenas oito dias depois da coletiva.

Não era a primeira vez que a indústria de games enfrentava problemas com sexo e violência nos jogos. Em 1976 o jogo para arcade Death Race, que tinha como objetivo atropelar pedestres (o game foi suavizado chamando as vítimas de “gremlins”) provocou uma onda de questionamentos na mídia e até mesmo ameaças de bomba contra os desenvolvedores. Já em 1982 foi a vez de Custer’s Revenge, game para Atari 2600, revoltar movimentos sociais por “recompensar” o jogador com um estupro ao final de cada fase e gerar protestos inflamados contra a desenvolvedora Mystique.

Porém o momento político e social dos anos 90, quando os EUA enfrentavam uma onda de violência intensamente noticiada pela mídia e o então presidente Bill Clinton propunha políticas mais restritivas para o controle de armas, além da associação de uma figura poderosa da mídia como o Captain Kangaroo, fez o movimento ganhar proporções inéditas.

A controvérsia foi tão divulgada que afetou a vida pessoal do game designer Rob Fulop, responsável por Night Trap. “O escândalo era meio bobo, e eu estava profundamente constrangido porque meus amigos, meus pais e minha namorada não jogavam video games. Todos eles sabiam que um jogo que eu fiz estava na TV e que Captain Kangaroo disse que ele é ruim para as crianças. Eu terminei com minha namorada porque achava tudo isso bobagem” contou o desenvolvedor em uma entrevista que faz parte do livro Replay: The History of Video Games.

Fulop ficou tão traumatizado que resolveu que faria seu próximo jogo o mais fofinho, ingênuo e livre de controvérsias possível. Foi assim que em 1995 nasceu Dogz: Your Computer Petz, um dos primeiros simuladores no estilo “bichinho virtual”. O game foi um grande sucesso de vendas e deu origem à série Petz, que se manteve popular por muito tempo.

Quem diria que Night Trap teria algo a ver com esses bichinhos fofos?

Fogo cruzado

Durante as audiências do inquérito instaurado pelo senado estadunidense contra a indústria de games, as coisas tomaram um rumo inesperado: em vez da briga rolar entre senadores e profissionais da área, o clima ficou pesado entre representantes da Nintendo e da Sega. Afinal, era uma época em que a rivalidade das duas empresas estava muito acirrada e a Sega provocava a Nintendo abertamente com o slogan “Genesis does what Nintendon’t”.

Como a controvérsia inicial envolvia os jogos Night TrapMortal Kombat, a Nintendo viu a chance perfeita de usar o incidente para atacar sua rival. Afinal, Night Trap não constava no catálogo da empresa e Mortal Kombat foi lançado para Super NES sem o sangue jorrando da versão original. A Big N alfinetou a concorrente durante as audiências, afirmando que um jogo como Night Trap jamais seria lançado para qualquer console Nintendo. Os representantes da Sega responderam mostrando uma Light Gun para SNES e listando todos os jogos violentos do console, inclusive usando o livro de Provenzo, que depôs no processo, como referência.

O barraco entre empresas em pleno congresso tinha, claro, fortes motivações comerciais. Era mais interessante para Sega que os senadores decidissem por um sistema de classificação etária como solução para manter os jogos considerados violentos no mercado, sem prejudicar seu catálogo, mais “adulto” que o da concorrente. Já a Nintendo poderia se beneficiar da proibição desses games, que destruiria boa parte do apelo e diferencial da Sega.

Após as primeiras sessões não apresentarem evidências conclusivas da influência dos games em comportamentos violentos, os senadores decidiram suspender temporariamente o inquérito, marcando uma nova reunião para o ano seguinte, na qual a indústria deveria apresentar uma proposta de classificação etária para os jogos.

Em março de 1994 os representantes da indústria de games voltaram para Washington, dessa vez mais organizados, após a fundação da Interactive Digital Software Association, representada pelo lobista veterano Douglas Lowenstein. Foi instituído o Entertainment Software Rating Board (ESRB), sistema adotado atualmente, a Sega suspendeu a distribuição de Night Trap para Sega CD, e lojas de brinquedos como a rede Toys R Us deixaram de vender o game polêmico. Isso acalmou o senado e o assunto foi deixado de lado.

Para a indústria, a controvérsia acabou sendo positiva. Night Trap Mortal Kombat venderam como nunca, e a criação do sistema de classificação etária acabou incentivando, ao invés de inibir, a produção de jogos violentos, já que as desenvolvedoras poderiam se safar de qualquer processo alegando que o ESRB deixa claro quais jogos são adequados para crianças ou não.

A violência e o machismo nos games não ficou mais difícil, e sim mais fácil de ser produzida e justificada. Até mesmo a Nintendo liberou o gore em Mortal Kombat 2. E se você se divertiu com a carnificina em God of War ou com os filhotes fofos de Nintendogz, agradeça a Night Trap.

Para ver cenas do inquérito Night Trap, além de entrevistas com os envolvidos, vale a pena assistir ao documentário Dangerous Games, abaixo (em inglês sem legendas).