Desde o dia 12 de fevereiro a internet viu o nascimento de uma nova comunidade, com novas datas importantes, novas disputas políticas e até mesmo novas religiões. E não foi preciso nenhuma nova rede social ou super gadget da Apple para isso, apenas um anônimo criativo que juntou três elementos já velhos conhecidos dos gamers: Pokémon Red, transmissão de jogos em streaming e MMORPGs.

Tudo começou quando foi ao ar uma partida de Pokémon Red na plataforma Twitch, normalmente utilizada para transmissão em tempo real com chat integrado. Porém Twitch Plays Pokémon permite que os usuários controlem o protagonista Red inserindo comandos escritos no chat, o que resultou em até 110.000 usuários controlando o mesmo avatar, ao mesmo tempo.

O resultado mais previsível para essa proposta maluca de jogabilidade é o caos. Porém, outra grande sacada de Twitch Plays Pokémon foi inserir o sistema de votação Anarquia versus Democracia. Através de votos, os jogadores podem optar pelo modo anárquico, em que todos os comandos são executados com resultados imprevisíveis; ou democrático, em que o comando mais votado em 20 segundos é executado.

O triunfo do modo Anarquia mostra que os jogadores estão mais interessados na desorientação caótica de um Red comandado por milhares de gamers do que em avançar no jogo. Mas qual seria a explicação para isso? Bagunça pura e simples? Vandalismo? Pelo andar do experimento, não.

Estou acompanhando e ocasionalmente jogando TPP desde que o link foi ao ar e atraiu a atenção da imprensa especializada em games (falei um pouco sobre isso nessa matéria do amigo Pedro Zambarda para o TechTudo). Fiquei tão viciada que não consigo deixar de olhar o progresso do jogo várias vezes ao dia. Porém acompanhar Twitch Plays Pokémon é muito mais que checar o streaming: envolve discussões no Reddit, dezenas de páginas no Facebook e memes, muitos memes. Enfim, as coisas mais legais de TPP são exteriores ao ambiente do game em si: o que importa mesmo é o que a comunidade de gamers está produzindo com isso.

O jogo tem mostrado a incrível capacidade humana de gerar significados a partir de elementos aparentemente aleatórios: os nomes dos pokémons capturados, que são palavras sem sentido resultantes de milhares de pessoas digitando simultaneamente, ganharam significados e narrativas especiais no ambiente do game.  Um Pidgeot batizado como “aaabaaajss” ficou conhecido como “Abba Jesus” e, por se tornar um membro forte da equipe com várias vitórias conquistadas, foi aclamado como o “messias” do game. O fato do Helix Fossil ser constantemente selecionado por engano durante as batalhas foi explicado pelos gamers como sendo uma busca de orientação espiritual por Red,  o que gerou o culto ao item e culminou com a transformação dele em Omanyte, celebrada pelos jogadores como a encarnação da divindade de TPP.

Fanart de Abba Jesus, o pokémon “messias”

A batalha entre os gamers partidários da anarquia e da democracia também levou à adoção de símbolos e slogans dos dois lados, com piadas internas e memes se multiplicando e replicando em altíssima velocidade na rede. Cada pequeno acontecimento é ressignificado e posicionado dentro do universo narrativo próprio criado pelos jogadores: assim que surgiram temas como o Flareon falso profeta da democracia e o Drowzee “The Keeper” que nos protege de sua malignidade. E essas narrativas surgem dos enganos e ações aleatórias de um Red controlado por milhares de gamers simultaneamente.

Pidgeot da Anarquia versus Flareon da Democracia
Pidgeot da Anarquia versus Flareon da Democracia

Portanto, não me apressaria em julgar a preferência dos gamers pelo modo Anarquia como uma demonstração de individualismo exacerbado na web. Afinal, qual seria a novidade em simplesmente avançar no jogo? Acredito que boa parte dos gamers, entre os quais me incluo, já fechou Pokémon Red e sabe o que acontece. A defesa pela Anarquia é a defesa do caos que gera todas as piadas internas, memes e histórias particulares que tornam TPP tão insanamente divertido (ou, como diríamos aqui no Brasil, da zueira, aquela que nunca acaba). E isso é muito coletivo.

Pessoalmente, acredito que em tempos onde parte irresponsável da imprensa ainda reforça o estereótipo do gamer antissocial e bizarro, que despreza contato humano e é potencialmente violento, Twitch Plays Pokémon é uma demonstração poderosa do quanto gostamos e nos divertimos estando juntos e interagindo. Quem diria que Pokémon me mostraria um dia a tal da beleza criativa do caos.