A Terra foi assolada pela terceira guerra mundial, com o uso de armas nucleares. Colônias humanas se formam em outros planetas, e a emigração é encorajada pelo governo. No entanto, apenas os melhores exemplares da espécie humana – aqueles que não apresentem problemas congênitos ou causados pela radiação – são permitidos, e como estímulo, androides são dados para as famílias que resolvem emigrar. Os robôs de aparência humana foram criados para lidarem com as atividades mais ingratas da cadeira de produção humana, e, inicialmente com intelecto limitado, atualmente são praticamente indistinguíveis dos seres humanos.

Esse é o cenário de Androides sonham com ovelhas elétricas? (Editora Aleph, 2014), de Philip K. Dick, livro que inspirou a adaptação cinematográfica Blade Runner (Ridley Scott, 1982). Inspirar é mesmo a palavra, porque as duas histórias tomam rumos bem diferentes, apesar dos elementos em comum (como nomes de personagens e situações semelhantes, por exemplo). Uma comparação, porém, não é o objetivo por ora.

Indubitavelmente um romance de ficção científica, Androides sonham…? conta com extrapolações científicas, mas as possibilidades de tamanha tecnologia não é o principal tema. Philip K. Dick não procura explicar seu cenário a fundo, embora ele crie uma linha do tempo coerente para um contexto pós guerra nuclear. O romance partilha a mesma base do gótico Frankenstein de Mary Shelley: o que faz de alguém um ser humano? Expandido esse questionamento, o que pode atestar não só a nossa autenticidade como ser humano, mas também que a realidade que eu vivencio é real?

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Imagem da edição de Androides sonham..?, da Editora Aleph

Deckard, caçador de androides foragidos das colônias que tentam viver disfarçados na Terra, vê-se lidando com uma nova geração das tais máquinas: o Nexus-6, que, além da aparência humana, possui um intelecto superior. Nesse meio tempo, ele conhece Rachel, androide encarregada de ajudá-lo a caçar seus semelhantes foragidos.

Durante sua jornada, porém, Deckard vai desvelando camadas de verdades, e suas certezas mais profundas são abaladas. Buscando alicerces para o seu trabalho – o de “aposentar” os androides foragidos, um eufemismo que ajuda a tornar o seu trabalho mais palatável – ele se apoia no Mercerismo, religião que tem entre seus preceitos a empatia ao próximo e a proteção de vidas frágeis como os animais, todos em processo avançado de extinção.

É com base nessas contradições que Dick cria um personagem tão mundano e, ao mesmo tempo, profundo. Deckard tem ambições terrenas – ter dinheiro o bastante para comprar um animal verdadeiro, não uma réplica elétrica, e emigrar de uma Terra condenada pela radiação. Busca uma conexão mística para encontrar um propósito em sua vida, um propósito superior que o ajude a superar seus dilemas morais. Como conviver consigo mesmo, afinal, ao promover uma matança de seres que pensam por si mesmos, mas que, criados em laboratório, são física e intelectualmente superiores a humanos “autênticos”?

Em contraponto a Deckard, somos apresentados a Isidore, um humano autêntico, porém com as faculdades mentais comprometidas pela poeira radioativa que reveste todo o planeta. Ele, como os androides, é rejeitado pela sociedade por perder seu valor funcional: proibido de emigrar e de ter filhos, Isidore está condenado a morrer junto com o planeta cada vez mais deserto. Ele acaba encontrando parte do grupo de androides foragidos, mas diferente de Deckard, não os rejeita. Ele enxerga nos seres artificiais a mesma situação de abandono por que passa, e isso lhe dá finalmente um propósito, um motivo para continuar existindo. Mas ele também tem suas crenças abaladas por esses mesmos seres artificiais.

Vários outras ideias podem ser vistas no romance: a precarização das relações humanas, de falas pontuais e sentimentos estimulados por máquinas; a tendência da sociedade de “coisificar” as pessoas, de forma que o que se vale é apenas aquilo que se pode produzir. A maior reflexão, porém, reside no repensar o humano. O que faz com que uma pessoa reconheça outra como um ser humano? Ou, em outras palavras, o que faz com que nós desumanizemos uma outra pessoa e a consideremos menor do que nós?

O texto de Dick, de escrita direta e pouco descritiva, não nos oferece uma resposta pronta, como era de se esperar. E essa é uma questão amplamente utilizada na ficção científica de vários meios diferentes, como em games, filmes, seriados e livros. Em um mundo em que nos tornamos cada vez mais ciborgues, mediando nossas relações com pessoas e com o mundo por produtos da tecnologia, nossas fronteiras entre homem e máquina já estão borradas. Se robôs e seres artificiais não passam de objetos, ou se são pessoas plenas em seus direitos, não cabe à ficção responder, mas sim nos convidar à reflexão.

androides-sonham-com-ovelhas-eletricas-livroAndroides sonham com ovelhas elétricas?

Editora Aleph – 2014, 272 páginas

Tradução: Ronaldo Bressane

A edição brasileira conta com alguns extras: uma entrevista traduzida com Philip K. Dick e um posfácio do tradutor, com observações sobre o filme e o romance.