Como qualquer gamer, eu fico muito irritada quando sou criticada por ser “velha demais para essas coisas de criança”, ou quando meu hobby é menosprezado como algo fútil e sem profundidade. Acusar o videogame de ser “apenas um brinquedo” ou de ser raso e limitado como forma de expressão é um óbvio absurdo para quem convive com o meio e conhece produção adultas ou o cenário indie. Porém, a persistência dessa opinião conservadora a respeito dos games sempre me intrigou, e me levou a refletir se nós que nos chamamos de “gamers” contribuímos para a perpetuação desse preconceito.

Eu tenho uma antiga relação de amor e ódio com que definimos no meio geek genericamente como fandom. O termo é usado para nomear as comunidades participativas de fãs que se reúnem em torno de algum produto de cultura pop, como seriados, filmes e games, entre outros. Geralmente, um único geek pertence a vários fandoms (eu mesma me incluiria no de Game of Thrones, Star Wars, Star Trek: TNG, Tolkien, Sailor Moon, Starcraft… entre outros e outros). O fandom pode ser tanto o universo mágico povoado de seres que não se incomodam em ficar horas e horas discutindo a cor dos olhos de Tyrion Lannister com você, quando todos os seus amigos não geeks já estariam pensando em atentar contra sua vida, quanto uma fonte inesgotável de bullying, desgaste emocional e intrigas rasteiras. O recurso mais recorrente na baixaria é a tradicional “carteirada”, quando um membro do fandom alega que você não é tão fã assim por qualquer motivo bobo como seus argumentos, seus hábitos, o tempo dedicado ao hobby, seu gênero, e outras coisas que geralmente não fazem muito sentido.

Carteirada fail
Típica situação de fandom: o sujeito foi dar carteirada em uma cosplayer, passou vergonha porque não conhecia a personagem. Melhor ficar calado, amiguinho

O meio gamer é um fandom como qualquer outro e infelizmente não está livre disso. Embora tenha conhecido algumas das pessoas mais importantes da minha vida em comunidades gamers, também já presenciei muita carteirada e exclusão, principalmente entre pessoas que estavam começando a conhecer o mundo dos jogos e foram cruelmente caracterizadas como n00bs. Não vou bancar a heroína aqui e dizer que nunca participei desses ataques: sim, passei um longo período de minha vida atacando também e promovendo a exclusão de membros. A necessidade de me validar no grupo me deixava eternamente na defensiva e me converteu em uma bully, que gritava junto com os agressores para não virar o alvo da agressão. Acho importante fazer esse mea culpa para refletirmos o quanto esse tipo de atitude é considerada normal entre os hard gamers.

Após a crise no mercado de videogames no final dos anos 80 a indústria achou que seria mais seguro vender seu produto como brinquedo, já que existia uma demanda mais constante e consolidada pelos mesmos. O resultado a longo prazo foi o tipo de situação que descrevo no primeiro parágrafo, com nós gamers enlouquecidos tentando provar que nosso hobby não é exclusivamente infantil (o fato de vermos a infância como algo depreciativo, visão que eu acho muito problemática, é assunto para outro post); ou, em casos mais graves, com o Marcelo Rezende vociferando que nossos consoles promovem lavagem cerebral em criancinhas para convertê-las em assassinas, como se os games não pudessem abordar violência pois são coisas “de criança”.

Marcelo Rezende culpando jogo por assassinato
Game acusado de provocar crimes: por que não o cinema ou a literatura?

É claro que todo esse tipo de pressão nos tornou defensivos. Claro que queremos provar que videogame é coisa séria, para os fortes, para quem tem coordenação e reflexo. Queremos nos validar como jovens e adultos com um hobby saudável, exclusivo e apropriado para nossa idade. Hey, não caçoe de games, games são incríveis, games não são para todos. Está me menosprezando? Tente passar essa fase. Tente memorizar esses controles. Eu sou incrível, cara. Acha que joguinho é essas coisas casuais que você curte? Pfffff, volte para seu Candy Crush.

Porém, a necessidade de nos validar nos torna muitas vezes violentamente defensivos e excludentes. E principalmente nos torna cegos ao fato de que nosso hobby já não é exclusivo. Para mim a revelação veio nos 40 minutos diários que passo no trem, saindo de meu emprego como designer e me dirigindo para a faculdade onde dou aulas. Um dia levantei meus olhos do smartphone e de meu jogo de Bag it! percebi que o óbvio estava na minha cara: uma multidão de pessoas de todas as idades, gêneros e classes sociais, jogando. 2048, Candy Crush, Angry Birds, Flappy Bird… não importava. Todas aquelas pessoas são gamers, embora elas provavelmente nunca venham a saber disso.

Game 2048
Você também joga, eu sei

Aqui sei que muitos gamers protestarão “mas são jogos casuais!”. Sim, e são jogos que movimentam uma parcela gigante do mercado de games atualmente, e que estão garantindo as carreiras de muitos jovens desenvolvedores que procuraram graduações em game design sonhando em desenvolver conteúdo autoral para o mercado indie e lutam para montar os próprios estúdios. Existe gradações de gamers, ou gamer é apenas quem joga? Quando você deixa de ser um cara comum que joga de vez em quando e se torna um gamer de verdade, esse status místico?

Afastar as pessoas dos games através de uma atitude bairrista não contribui para que os jogos sejam mais compreendidos pela sociedade. Já escrevi aqui um artigo sobre a utilização dos games como forma de expressão de sentimentos e sua crescente aceitação pelo público. Gosto de ver que quanto mais as pessoas se apropriam dos games, mais eles ganham em diversidade e relevância. Ficarmos apegados ao padrão hard gamer tradicional que acabou nos rendendo uma indústria mainstream preguiçosa, com títulos extremamente parecidos em personagens e estética, em uma receita repetida infinitamente prevendo sempre o mesmo público.

Espero que estejamos caminhando para a noção de que games são para todos, e não apenas para os gamers. Desejo que na próxima vez em que um jogo for sacudido e rebaixado pelo Marcelo Rezende, a revolta seja geral porque as pessoas perceberão que jogam e que não se tornaram assassinas ou portadoras de uma identidade a parte, uma persona “gamer”. Creio que devemos nos abrir para pensar o videogame como uma expressão cultural característica de nossa época e não um hobby para poucos eleitos. Creio que chegamos em um ponto em que podemos abandonar nossa postura defensiva e aproveitarmos toda a diversidade que a distribuição digital tem propiciado para nós, e podemos explorar o formato de forma mais abrangente. Mas para isso, a comunidade gamer precisa ser mais inclusiva. E talvez essa inclusão comece com a própria dissolução da ideia de uma identidade gamer.

P.S: gostaria de recomendar o texto de Pedro Paiva, Contra a identidade gamer, e convidá-los a debater o tema nos comentários, no nosso Twitter (sou a @b3ablanco) e em nosso grupo no Facebook. Queremos ouvir vocês!

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