Não me lembro o momento em que escolhi estudar arte e transformar esse estudo em minha profissão. Mas provavelmente as tardes que passei assistindo Sociedade dos Poetas Mortos na minha adolescência me influenciaram bastante. Naquela época, arte e videogames pareciam conceitos distantes para mim. Então fiquei muito feliz e surpresa quando soube que o Robin Williams, ao meu ver um super artista, era fã dos mesmos games que eu e tinha batizado sua filha como Zelda, homenageando minha princesa preferida. Ficava feliz em ver um grande artista curtindo e validando o mesmo hobby que eu.

Por isso quando soube da morte do ator, me senti triplamente triste. Por ele, por ver um fã de games que me inspirou partindo, e pelo festival de ignorância e julgamento sobre depressão e suicídio que eu sabia que iria se iniciar nas redes sociais. Ainda mal tinha me recuperado das barbaridades que li após a partida de Fausto Fanti, humorista do Hermes e Renato, encontrado morto em sua residência no dia 30 de Julho.

Eu nunca tive depressão. Nunca desejei tirar minha própria vida. Mas eu tive contato, através da arte, com histórias em que personagens que se tornaram queridos viviam essa situação. Isso me tornou empática, dentro do possível. Pude viver um pouquinho da dor deles, uma parcela mínima mas muito marcante para mim, através da arte. E essa possibilidade de viver outras vidas que me fez escolher estudar a expressão artística e reconhecer sua importância. E desejar e buscar essa mesma experiência nos games, que via como separados da minha vivência da arte. Afinal,eles eram apenas brinquedos para mim naquela época.

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Robin e Zelda Williams: um artista sensível que soube olhar para os games

Recentemente os games estiveram no centro de uma discussão sobre seu status de arte: afinal, podemos considerar nossos queridos joguinhos como produções artísticas? Sim, tanto quanto podemos considerar o cinema ou as HQs. Claro, isso não quer dizer que qualquer game é uma obra de arte. Mas que os jogos são uma linguagem possível para a expressão artística, quando assim concebidos pelos seus autores.

O que diferencia um game “de arte” de um simples “joguinho” é um debate extenso que cai na própria definição do que é arte.

Todos os semestres inicio meu curso de História da Arte fazendo a mesma pergunta para meus alunos:  “o que é arte?” A primeira reação geralmente é o silêncio. Depois, um a um, surgem palpites tímidos aqui e ali. Todos os alunos esperam que eu finalmente dê a resposta. E eu não dou. Porque eu não tenho.

Claro que existem conceitos sobre o que é arte. Existem um conjunto de manifestações estéticas que chamamos de arte. Porém, como bater o martelo? Qual é a escala que conceitua arte e não-arte? Pessoalmente, eu gosto de pensar em arte a partir de duas definições de que eu gosto muito. A primeira é poética, de Oscar Wilde, no genial prefácio de O retrato de Dorian Gray:

“Pode-se perdoar a um homem o fazer uma coisa útil, enquanto ele a não admira. A única desculpa que merece quem faz uma coisa inútil é admirá-la intensamente.Toda a arte é absolutamente inútil.”

A segunda é mais técnica, de E.H. Gombrich, historiador e autor de uma das mais populares obras de ensino artístico no mundo, A História da Arte (fonte da citação a seguir):

“Nada existe realmente a que se possa dar o nome Arte. Existem somente artistas. (…) Não prejudica ninguém dar o nome de arte a todas essas atividades, desde que se conserve em mente que tal palavra pode significar coisas muito diversas, em tempos e lugares diferentes, e que Arte com A maiúsculo não existe.

Na verdade, Arte com A maiúsculo passou a ser algo como um bicho papão, como um fetiche. Podemos esmagar um artista dizendo-lhe que o que ele acaba de fazer não é ‘Arte’. E podemos desconcertar qualquer pessoa que esteja contemplando com deleite uma tela, declarando que aquilo que ela aprecia não é Arte mas uma coisa muito diferente”.

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Games em exposição no Museum of Modern Art (MoMA) em Nova York: sim, games são arte

A definição de Oscar Wilde nos dá uma primeira dica para pensar no que seria um jogo “de arte”: a “inutilidade”. Na verdade, não é que a arte seja inútil no sentido de dispensável (se fosse, pouco sentido faria a sua existência ao longo de tantas culturas humanas). Mas a arte não é utilitária. Não se faz arte como se faz objetos que têm alguma função. A arte é contemplativa, como o próprio Wilde afirma. Um jogo artístico não precisa ser divertido, ou com tarefas e objetivos delimitados para serem executados (na verdade, nenhum jogo deveria ter essa obrigação ao meu ver. Mas isso do meu ponto de vista como pessoa que considera jogos manifestações artísticas e expressivas por definição).

Já Gombrich abraça outra característica muito forte na cultura de massa em geral, inclusive nos games: o elitismo que cerca a definição de arte. Costumamos usar o termo “arte” como adjetivo, e não substantivo. Quando achamos que algo é belo, de qualidade, dizemos que é arte. Arte virou, como Gombrich destaca, uma palavra fetiche. Arte com A maiúsculo. Esse tipo de visão leva a classificações rasas em que algumas obras têm seu status de arte violentamente questionados por não parecerem de suficiente bom gosto. Isso gera confusão porque leva as pessoas a pensarem que arte é um adjetivo de valor para produções validadas por uma sociedade. Quando na verdade, arte é apenas o que os artistas fazem.

E outra coisa a considerar nessa fetichização do status de arte é que, se arte é um indicativo de qualidade, está vinculada ao status quo. E isso quer dizer que, quem define o que é arte ou não nesse sistema, são as pessoas que têm alguma dominância: seja cultural, financeira, política, entre outras. Vemos muito isso acontecer no meio gamer com a questão do design: joguinho “de arte” tem design bonito. É uma definição que tira totalmente o foco da expressão e transfere para uma estética validada pelo mercado, a do gráfico que impressiona. Esse equívoco apaga a visibilidade de importantes produções expressivas em games.

Existem devs independentes fazendo jogos que não são “bonitos”, não são divertidos, não servem para distrair, e nós precisamos jogá-los, pelo mesmo motivo em que precisamos ter contato com literatura histórica ou com  documentários: muitos desses jogos falam de experiências que não estão ao nosso alcance, mas envolvem pessoas que querem contar com nosso apoio. Se reconhecermos que um jogo não precisa ser insanamente divertido ou ter gráficos impressionantes para ser artístico, importante e expressivo, encontramos um rico material online sobre temas como sexualidade, abuso, e depressão, com potencial para nos levar a refletir e acolher essas pessoas.

As mortes de Fausto Fanti e Robin Williams provocaram uma comoção pública a respeito da depressão e geraram muita informação necessária a respeito. Não sou especialista e não irei opinar sobre o tema aqui, preferindo indicar o blog Falando sobre saúde mental, que o desenvolveu lindamente. Mas quero encerrar esse post pedindo mais atenção aos games que não são divertidos. Recomendo especialmente o Depression Quest. Quem sabe os games consigam, mais do que a superficialidade das notícias e das redes sociais, nos colocar com responsabilidade diante da dor dos outros.