Embora eu tenha aprendido a jogar videogames antes de aprender a ler, confesso que a literatura foi uma paixão mais constante na minha vida que os games. Sempre joguei, mas com o tempo passei a me incomodar muito com a repetição de temas e clichês nos games, e buscava personagens mais cativantes na literatura, principalmente na literatura inglesa do século XIX. Ler me dava a chance de experimentar (embora de forma limitada) vidas alheias que me pareciam fascinantes, distantes e próximas de mim: Dorian Gray, Lizzie Bennet, Catherine Earnshaw.

Por isso eu vi com muito entusiasmo o surgimento de games com foco em personagens e experiências mais emocionais e diversas, que viriam a ser chamados de games empáticos (ou Empathy Games), entusiasmo que me levou a um projeto de pesquisa e muita imersão no tema. A empatia nos jogos é vendida com entusiasmo atualmente, e muitos acreditam que games podem ensinar a se colocar no lugar do outro e mudar a sociedade. Comecei minha pesquisa acreditando que abordar empatia nos games era a coisa mais incrível que alguém já havia pensado. E aí percebi o quanto essa questão é mais complexa do que parece.

Mas o que é empatia?

Imagine que você está olhando uma linda criancinha correr em um parque, feliz e despreocupada. Então ela tropeça em uma pedra, cai e levanta com a testa toda ralada e ensanguentada.

Deu uma sensação ruim aí? Isso é empatia.

Na definição mais aceita pelos pesquisadores atualmente (um levantamento bem interessante sobre o andamento da pesquisa em neuropsicologia e empatia aplicada a ficção são estudos de Suzanne Keen sobre empatia na literatura) existe uma diferença entre empatia e simpatia, que pode ser resumida em: na empatia é quando eu sinto o que você sente, e simpatia é quando eu sinto pelo que você sente.

Voltando para a situação da criança caindo no parque, empatia é aquela aflição de se colocar no lugar da criaturinha e praticamente sentir a dor dela, como quando nós temos a reação de nos contorcermos de dor ao assistir o tombo de outra pessoa, como se a queda fosse nossa. Simpatia é quando você sente pena pela criança que caiu, mais racionalmente, sem necessariamente compartilhar a sensação com ela.

Empatia (empathy) é um termo relativamente recente na língua inglesa, e foi cunhado pelo psicólogo britânico Edward Titchener em 1909 como tradução para a palavra alemã einfühlung, que já era usada em discussões de teoria literária desde o século XIX. No século XVIII o que hoje chamamos de empatia era genericamente nomeado “simpatia”, inclusive quando se traduzia einfühlung.

O conceito de empatia/simpatia ganhou relevância na literatura do século XIX (aquela que eu mencionei ter embalado a minha adolescência), quando começou a aparecer na maior parte das críticas literárias publicadas na época. Era visto tanto como um indicador de qualidade das obras, já que as menções a capacidade de gerar empatia dos livros analisados eram sempre positivas, quanto como um motivo de preocupação: muitos críticos do romance alertavam sobre o perigo da empatia, que estaria criando um público que ignoraria os sofrimentos reais de pessoas a sua volta para chorar a tragédia de algum personagem imaginário. Como as mulheres eram a maior parte do público leitor de romances e novelas, a empatia também sofria com o machismo e era descrita por esses mesmos críticos como um recurso sensacionalista para cativar um público sentimental e pouco intelectualizado.

OK, mas e os joguinhos?

Transferindo essa discussão para os games, a empatia entrou em foco principalmente com o trabalho de desenvolvedores indies, que começaram a explorar a tradução de sentimentos e experiências para o game design. Essas experimentações coincidiram com a “primavera indie”que está rolando nos últimos anos desde que conhecemos as maravilhas da distribuição digital, e chamaram a atenção da imprensa e do público. Explodiram discussões sobre empatia nos jogos, sobre diversidade nos games, mobilizações online e offline e eu resolvi finalmente fazer um projeto de doutorado.

Lembro do quanto empolgada fiquei quando li Rise of the Videogame Zinesters, da desenvolvedora Anna Anthropy, uma das minhas heroínas indie e autora de jogos que falam um pouco sobre sua experiência em ser uma mulher lésbica e trans. Em um dos trechos do livro, Anna diz que games são bons para falar de vivências porque eles mesmos podem ser descritos como experiências regidas por regras. Para gerar uma experiência semelhante a que você quer narrar, basta encontrar as regras certas, aplicáveis ao game design, que criem uma situação semelhante no game. Assim, você pode fazer um jogo sobre qualquer coisa! Uau, achei isso incrível.

Acostumada a me frustrar com a repetição de temas na indústria mainstream, me parecia a coisa mais libertadora do mundo fazer jogos sobre qualquer coisa, especialmente sobre identidades marginalizadas dentro da cultura gamer. A imprensa em geral se derramava em elogios e textões sobre como os jogos da Anna traduziam perfeitamente a experiência de ser uma mulher transexual. E foi aí que ela ficou irritada de verdade.

O problema da empatia na ficção

Dys4ia é um jogo criado por Anna Anthropy, em que ela fala um pouco sobre o processo da terapia hormonal para mulheres transexuais e suas vivências com isso. O jogo se tornou um sucesso espantoso, nas palavras da própria criadora, com mais visibilidade que todo o resto da sua produção, e motivou uma onda de entusiasmo com a suposta possibilidade de entender como é ser transexual ao jogá-lo.

Obviamente essa suposição é bem absurda, já que é impossível vivenciar a realidade do que é ser uma pessoa transexual em um mundo como o nosso através de um game. Quando a crítica começou a falar nisso, Anna ficou realmente furiosa e criou uma obra chamada Empathy game: uma instalação que consiste em um par de sapatos com um contador de passos. Segundo a autora, só assim saberemos como é andar uma milha usando seus sapatos (em inglês, calçar os sapatos de alguém é uma expressão para dizer colocar-se no lugar de outra pessoa).  E nem assim saberemos como é ser transexual se não o formos.

Apesar da crítica aos romances pela crítica do século XIX ter viés de gênero e de preconceito intelectual, a crítica pós colonialista dos séculos XX e XXI levantou uma questão importante a respeito da exploração da empatia na ficção: o sentir com o personagem tem algum impacto positivo para o público, no sentido de tornar as pessoas melhores com outras em situações semelhantes às relatadas na ficção, ou só usamos a dor alheia para entretenimento, para nos sentirmos pessoas boas e sensíveis por termos chorado a tragédia imaginária? Os críticos mais recentes apontam que existe uma relação pornográfica com a empatia, no sentido de a explorarmos para nosso próprio deleite emocional e sem nenhum comprometimento com uma empatia real com outras pessoas.

Resumindo: games empáticos serviriam para os gamers viverem experiências alheias como mero fetiche, exaltarem a a própria sensibilidade nas redes sociais, e depois voltarem a suas vidas sem nenhuma conexão com aquela realidade.

Suzanne Keen fez um experimento em que pediu para um grupo de alunos de pós graduação ler um email com aquele conhecido golpe das pessoas africanas que precisam de ajuda em dinheiro, e um trecho de um romance que retrata a situação de sofrimento de uma garota africana. Ela relata que em todos os casos os estudantes não se sensibilizaram pelo email, ficando na defensiva e indignados por perceberem rapidamente que era um golpe, mas se emocionaram com o trecho do livro a ponto de pensarem em ajudar alguma ONG africana. Muitos disseram que um dos motivos para se sensibilizarem pelo livro, narrado em primeira pessoa pela garota africana, é que ela não pedia nada, apesar de sua desgraça. Keen concluiu que a ficção é mais eficaz para gerar empatia que uma abordagem direta, porém que essa eficácia pode se originar justamente do fato que a empatia com a ficção não demanda nenhum tipo de comprometimento, ao contrário da empatia com pessoas reais.

Os games empáticos mudarão o mundo?

Provavelmente não sozinhos. Suzanne Keen tenta responder essa questão em relação à literatura, questionando o senso comum de que ler torna você um cidadão melhor. A verdade é que é muito difícil determinar a influência da ficção focada em empatia, seja em games ou livros, no comportamento altruísta do público.

Uma das razões é a metodologia para determinar isso: a maior parte das pesquisas sobre a influência da ficção no comportamento cotidiano é feita através de relatos dos participantes, o que não é lá uma maneira muito precisa de coletar dados nesses casos. Como o altruísmo é um valor ético na nossa sociedade, as pessoas tendem a relatar mais o que se espera delas do que elas realmente sentem.

Usando um dos exemplos históricos mais famosos de altruísmo, o das pessoas que ajudaram os judeus durante o Holocausto, existe uma pesquisa de 1988 chamada Altruistic Personality: Rescuers Of Jews In Nazi Europe , conduzida pelos sociólogos Pearl M. Oliner and Samuel P. Oliner , que tentou encontrar algum padrão entre europeus que arriscaram as próprias vidas para salvar judeus durante a perseguição nazista. O estudo não aborda consumo de obras de ficção, mas é difícil pensar que elas tiveram alguma influência significativa nos resgates já que menos de 1% da população se envolveu neles, e certamente o número de pessoas que consumia fiçção com elementos empáticos era bem maior. Mas os estudo tem alguns resultados interessantes sobre as características mais constantes dos altruístas do Holocausto: a maioria tinha maiores níveis educacionais que a média, conhecia judeus antes da ascensão nazista, tinha fortes convicções religiosas, morais ou políticas e, o mais importante, estavam cercadas de pessoas mais velhas ou familiares que eram exemplos de ajuda e dedicação ao próximo.

Outro dado interessante desse estudo é que os pesquisadores não notaram nenhuma diferença na média de respostas empáticas entre as pessoas que ajudaram judeus durante o Holocausto e a população em geral, mas encontraram diferenças significativas na resposta simpática, aquela mais racional. Sentir a aflição de forma espelhada com a outra pessoa não é tão determinante para fazer a diferença naquela situação, pelo contrário: sabe quando aparece uma foto horrível de animal mutilado na sua timeline e você oculta imediatamente para não se sentir mal, sem nem ler o post pra ver se pode ajudar o bichinho? Nesse caso a empatia mais atrapalhou que ajudou, já que a tendência humana é se afastar da fonte de sofrimento. Uma resposta simpática seria sentir piedade pelo animal de forma mais racional e distanciada, que permitiria ter sangue frio o suficiente para procurar uma forma de ajudar. Levando em conta que convicções morais, religiosas ou políticas estão entre os fatores mais determinantes para ser altruísta, dá para concluir que o que leva alguém a ser melhor não é tanto sentir a dor do outro e sim acreditar que aquilo é a coisa certa a fazer.

Aí é que os jogos entram: tudo que consumimos contribui na construção das nossas convicções e valores. Embora seja um absurdo dizer que jogos empáticos são capazes de te fazer sentir-se como outra pessoa, é possível dizer que esses games trazem a discussão de outras realidades e podem levar a sentir mais simpatia por aqueles que são diferentes de você, como mostra uma pesquisa recente que encontrou esse tipo de comportamento entre pessoas que liam Harry Potter, série que aborda o preconceito. Um amigo meu contou que, ao terminar de jogar Heavy Rain (um jogo que explora muito a empatia para contar o sofrimento de um pai que tem o filho sequestrado) sentiu-se imediatamente levado a dar um abraço emocionado em seu pai, e que pensa mais no amor existente na paternidade desde então, mesmo sem ter filhos. Jogar That Dragon, Cancer nunca vai fazer nos sentirmos como aquele pai se sentiu, mas pode levar o gamer a refletir sobre a doença e a tentar melhorar a vida de alguma criança nessa situação se tiver a oportunidade. Existem estudos específicos sobre games que conseguiram encontrar resultados nesse sentido, tanto para influência positiva quanto para negativa.

Acho que o maior mérito dos jogos empáticos foi o de levantar discussões que normalmente não aconteceriam no mundo gamer, e ajudar a amadurecer a mídia com elas. Ações como a #EverydayHeroes, campanha da Square-Enix para combater o bullying baseado no jogo Life is Strange são exemplos de como os games podem ser uma mídia de influência para um mundo mais legal. O amadurecimento dos videogames como mídia é visível nos últimos anos, e é parte desse processo questionarmos qual a posição dos jogos na dinâmica de valores da nossa sociedade. Precisa de bem mais que empatia para isso. Mas a empatia já é um bom começo.